Artigo
A Carta da Páscoa 2020
por Graziela Merlina*
Esse era um dia em que podia-se acordar mais tarde. Afinal, era feriado, e como criança não cabia a mim preparar o almoço.
Mas, a casa acordava cedo. Aquele bacalhau que ficou de molho à noite inteira precisava ser preparado com carinho, cuidado e temperos na medida certa.
As crianças, privilégio meu e da minha irmã, acordavam já sentindo um cheiro de comida boa e farta.
Enquanto o pai lia o jornal, escolhia o vinho e comprava o pão italiano fresquinho que seria mais tarde mergulhado no azeite que dançava no fundo da assadeira do bacalhau; a mãe caprichava na receita ao mesmo tempo que nos lembrava antes de qualquer movimento inadequado: “Meninas, lembrem-se que hoje não podem comer carne. É Sexta-feira Santa.”
Parecia que nessa hora minha saliva tinha vida própria e só me fazia pensar em um café da manhã com pão e mortadela, ou até ovos com bacon. Mas, logo passava porque o ovo quente da mamãe era tão acolhedor que preenchia a manhã.
O bacalhau não era de fato a minha comida preferida. Eu adorava as batatas e o grão de bico. Mas é impressionante como a minha memória guarda o sabor do peixe da Sexta-feira Santa.
É o sabor das lembranças de família reunida, ovos de chocolate escondidos, missa, telefone tocando com um “pronto” vindo dos parentes da Itália porque desejar Buona Pasqua é sinal de amor e afeto. Afeto que também vinha do tio e da tia. Mais um casal de italianos pra preencher a bagunça da casa.
Os dias eram ensolarados, assim eu e minha irmã podíamos brincar no quintal enquanto tudo era feito com afeto e barulho.
Muitos anos mais tarde, casada e morando em outra cidade lembro até hoje da alegria de ver meus pais chegando pra passar a Páscoa na minha casa, trazendo a velha (e a mesma) assadeira de bacalhau.
O que poderia ser mais amoroso?
Hoje, aquelas meninas são mães. Aqueles pais são a nonna e o nonno. O bacalhau poderia ser o mesmo. Os netos poderiam justificar os ovos de chocolate. Os genros poderiam escolher o vinho. A Itália chamaria por vídeo.
Mas ficam apenas as lembranças. Memórias que me enchem de contentamento nessa Páscoa de quarentena, pandemia e confinamento. É a Páscoa 2020.
Não há família reunida, nem o cheiro do bacalhau da nonna. Mas há o que sempre haverá: doces lembranças, muito amor, renovação da fé.
A Páscoa tem sua magia. E essa ninguém nos tira. Um mundo que vive um imenso desafio está unido nesse momento que significa a passagem da morte para a vida.
Que seja o momento de reconhecer, celebrar e agradecer por tudo que está vivo em nós. Família querida e amada: são vocês que estão vivos em mim.
*Graziela Merlina - Conselheira Capitalismo Consciente Brasil | Idealizadora do HUB Consultores Conscientes @CasaMerlina | Fundadora da ApoenaRH | Game Designer | Palestrante